quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Um lugar que, no passado, produzia mesmidades




 


Um lugar comum. Assim era a escola no tempo em que César estudava.
César lembra que, quando estudava, o mundo era múltiplo e veloz, mas que alguns lugares se caracterizavam pela sua “perenidade e pela verdade de uma lição de coisas”[1]. Escola, convento, asilo, hospital e quartel, eram destes lugares comuns, que celebravam a característica de perpetuidade e existiam sob-regimes de verdade, autorizando ou não discursos que justificam o domínio de uns sobre os outros.
Mas de todos estes lugares comuns dos homens e das cidades, aquele que marcou a história de César foi a “escola”.
Olhando como os gregos deram significados ao que se entendia por escola, no tempo em que César estudou, é que entendemos um pouco melhor por que a escola necessitava ser um lugar comum e produzir lugares comuns. Aristóteles (384-322 a.C.) dizia que um lugar comum “tinha por função guardar uma certa generalidade, condensando imagens e palavras comumente usadas pelos oradores e comumente sustentadas pela audiência”[2].
Se as imagens e as nomeações são uma das primeiras formas de demarcar um território e de estabelecer fronteiras entre grupos sociais, a escola, no tempo em que César estudou, pôde fazer disto uma ação assimilativa da cultura e adaptativa quanto ao meio (território). César aprendeu que as palavras e coisas que levava com ele serviam como senhas para entrar em grupos ou frequentar determinado lugares.
Assim, culturas de poucos e bastante particulares eram transformadas em senso comum. Cada vez mais, um número maior de pessoas tornava-se feliz por falarem as mesmas coisas, vestirem as mesmas roupas, cantarem as mesmas músicas; quando se encontravam parecia até que um lia os pensamentos do outro. Era muito fácil fazer amizade, César se lembra dos 3.577 amigos que foram fiéis a ele e migraram do Orquite para o Facetruque. Os gestos, os cabelos, as pulseiras que intermediavam grupos de diferentes escolas, de diferentes cidades e até de diferentes países (como o Uélissom que veio da Colômbia e estudava no 8º C) facilitavam a conversa entre eles e, rapidamente, lá estavam eles compartilhando dicas e os melhores sites de onde comprar o mais novo boné do grupo Reistress.
Isto que se fazia na escola (e em muitos outros lugares também) era um importante recurso estratégico de organização de uma “memória artificial”[3], não apenas em seu aspecto figurativo – o brinquedo, o refrão da música, o boné de lado, o hashtag – mas em seu aspecto operativo, ligado às maneiras de conceber o mundo e o conhecimento.
Assim, César e a maioria dos seus amigos (lembremos de seus 3.577 amigos) e dos amigos dos seus amigos também mantinham outras semelhanças. Sabiam as mesmas coisas sobre o Tsunami, o Obama e a Amazônia, contavam as mesmas histórias sobre os negros e os governos, sabiam as mesmas características da Tundra e da Taiga, davam as mesmas explicações sobre a existência dos sem terra, do aquecimento global e da fome na África.
Para isso, César, seus amigos e todos os alunos de todas as escolas do Brasil participavam da mesma corrida, seguiam um percurso, cuja pista, obstáculos e mapa foram cuidadosamente desenhados para serem seguidos. Assim, um dos recursos estratégicos que garantiam que todos tivessem acesso aos mesmos saberes era o estabelecimento deste determinado percurso (curriculum) do qual todos tinham de participar, um lugar onde todos os homens deviam frequentar progressivamente, com rituais comuns, horários e lições.
Desde o “Diálogo da conversão do gentio”, escrito pelo Padre Manuel da Nóbrega, na Bahia em 1557, são procuradas semelhanças e dessemelhanças entre os povos colonizadores e os que precisavam ser colonizados[4]. A dessemelhança era assunto de reflexão, mas para que fosse suplantada, e os esforços iam desde “harmonizar” as vestimentas, cortes de cabelos, crenças às concepções sobre si e sobre o velho mundo que os conduzia à civilidade.
Assim, na escola foi se criando uma sociedade tida como nova, moderna, “harmônica” e de memória artificial, alcançando seus ápices na época em que César era aluno.
Mas César se lembra dos colegas Serginho e Fernanda e da professora de geografia Rosalva, que eram diferentes de todos. César não sabia ao certo se eles não se saiam bem nas senhas para entrar nos grupos ou se nenhum dos grupos que existia na escola lhes interessava. Mas uma coisa era visível, eles estavam entre as principais preocupações da escola. O que fazer com as dessemelhanças?
Ao mesmo tempo em que um lugar comum ensina saberes iguais e produz mesmidades, ele também funda saberes sobre o outro que é diferente, por não participar ou não se adequar a nenhum dos modelos previstos. Funda-se, então, uma nova categoria na classificação, para que eles possam ser considerados dentro de certa normalidade e logo se criam regras para sua inclusão, e assim resolve-se (no âmbito dos saberes) o problema daquela diferença, ou, por outro lado, fundam-se nomeações que, mais do que excluir, deprecia o diferente. Bárbaro, selvagem, atrasado, subdesenvolvido, alienado, menos civilizado, feio, ignorante, culturalmente inferior – são saberes que deflagram os sentidos particulares de existência, portanto deflagram a própria existência de uma pessoa.
César e seus amigos cresceram. Os saberes que antes serviam somente para passar nas etapas do percurso (curriculum), para que sua escola e seus professores figurassem num índice e para que ele figurasse em outro que dava acesso à universidade, agora se constituíam em práticas. E César percebeu que, um a um, excluiu ou foi excluído pelos seus 3.577 amigos, não do Facetruque, mas da sua rede social; os refrãos das músicas e os hashtags não bastavam mais para mantê-los “irmãos”. Aquilo que antes eles sabiam, agora eles sentiam. O que antes só ganhava o nome de atrasado, agora recebia preconceito.
Esse lugar, no sonho de César, existiu num passado distante. Em seus sonhos, poucos resquícios deste lugar podem ser encontrados nos dias de hoje.



[1]                      Parafraseando Foucault (2006, p. 255), em “Isso não é um cachimbo”, ao descrever “o lugar da imagem” do cachimbo colocada por Magritte. FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. In: FOUCAULT, Michel. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. 247-263.
[2]              Aristóteles citado por Ana Smolka (2006, p. 100). SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. Experiência e discurso como lugares de memória: a escola e a produção de lugares comuns. Pro-Posições, v. 17, n. 2 (50), Campinas, 2006. p. 100.
[3]              SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. Experiência e discurso como lugares de memória: a escola e a produção de lugares comuns. Pro-Posições, v. 17, n. 2 (50), Campinas, 2006. p. 100.
[4]              CUNHA, Manuela Carneiro da. Imagens de índios do Brasil: o século XVI. Estudos Avançados. v.4, n.10. São Paulo, 1990. p. 103.

 

Amanda Regina Gonçalves
Professora do curso de Licenciatura em Geografia na Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Mestre em Educação e Doutora em Geografia. Atua nos temas de cartografia escolar, formação de professores, currículos.



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